quinta-feira, 28 de abril de 2011

Adélia Prado- Parte 6


O VESTIDO


No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.



(Adélia Prado)

Adélia Prado-Parte 5


FATAL

"Os moços tão bonitos me doem,
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma atriz em decadência,
mas, como sei disso, o que sou
é uma mulher com um radar poderoso.
Por isso, quando eles não me vêem
como se dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem.
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero.
Quando cuidam que não,
estão todos no meu bolso."



(Adélia Prado)

Adélia Prado- Parte 4


Neurolingüistíca


Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.


(Adélia Prado)

Adélia Prado-Parte 3


ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

(Adélia Prado)

Adélia Prado-parte 2


COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado)

Adélia Prado- Parte 1


IMPRESSIONISTA


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

(Adélia Prado)

sábado, 23 de abril de 2011

Diante do que não entendo

Sou limitado demais
para compreender
as fúrias e paixões
que movem os homens
e configuram
o enredo da vida.

Sou pequenino demais
diante do impassível tempo
que ás vezes escreve torto
em minhas linhas certas.
Por isso falo através da poesia,
onde posso ser múltiplo ou nulo.

Sou menino demais
para suportar as dores e apatias
desse triste mundo adulto.
Por isso protejo meu coração
em distantes ilhas
e castelos de pedra.

Países, cidades, lugares, pessoas
construíram minha identidade
de estrangeiro,
deram-me esta alma
de nômade,
a inquietude da dúvida.

Thiago Cardoso Sepriano

O BODE TOLO E UFANISTA, LEIA-SE, O NORDESTINO

... o nordestino (exceto raríssimas exceções
dentre as quais eu, obviamente, estou incluído)
costuma chamar-se a si mesmo de “cabra macho”,
leia-se, bode, haja vista que o macho da cabra
é o bode, e bode tolo e ufanista ainda por cima,
desses que além de deixarem que os políticos
os mantenham presos em currais eleitorais
ainda estufam, ufanos e irracionais, o peito
quando por ocasião da campanha eleitoral
o corno, filho da puta e ladrão deputado fulano
de tal bate à sua porta, ou melhor, vem até à porteira do curral
para vê se o dito, encurralado e caprino cujo
está pronto para ser levado eufemisticamente ao Paraíso
cujo nome não eufêmico é Matadouro...

Não, eu não tenho orgulho de ser nordestino...
Comigo, leitor, “o buraco”
(inclusive o que nós, suicidas,
fizemos irracionalmente
na camada de ozônio) é literalmente
lá em cima, entenda-se,
em vez de me orgulhar
de haver nascido no Nordeste,
eu sinto é vergonha de pertencer
a uma espécie cuja lúbrica Mãe Primordial
trocou a imortalidade do corpo
por uma banana alegórica,
banana sim, leitor, já que está provado
que o clima quente do Jardim
era inadequado ao cultivo das macieiras,
tanto das que produzem pênis e vaginas,
quanto das produtoras de maçãs propriamente ditas...


José Lindomar Cabral

ODE AO BOM HUMOUR DE MEU FÍGADO

... às vezes sou acordado de madrugada
pelas palavras excitadas e, preliminarmente,
me excitando, apalpando-me com suas cálidas
e ainda não modeladas mãos de vento,
querendo a todo custo fazer comigo algo
que se fosse no tempo em que o verbo sangrava,
ou melhor, não tinha voltado de novo a ser verbo,
seria chamado explícita e literalmente sexo...

E como já estou cansado de saber que não adianta
dizer que elas – as palavras – tenham santa paciência
porque o dia ainda está longe de amanhecer,
levanto-me, resignado, em geral com vontade de mijar
e, portanto, com o pau por acolá,
mas me dirijo primeiro à escrivaninha
(já que no meu caso escrever é uma necessidade fisiológica
mais urgente do que aliviar a bexiga, por exemplo)
e me ponho a fazer aquilo que se fosse na época
em que o verbo ainda era carne, chamar-se-ia foder
em vez de chamar-se escrever...

E, então, escrevo... escrevo... escrevo... escrevo... escrevo...
... até que meu fígado (dilacerado e bilioso) mas sempre
de bem com o humour, advirta visceralmente a caneta:
Pare, seu abutre esfomeado de uma figa!... Senão quando
a hora do almoço chegar, você vai ter apenas rins endurecidos
e algumas pedras (diz-se, cálculos renais) para beliscar...


José Lindomar Cabral

LÍNGUA DE PAU E PALATO DE PEDRA

... quando escrevo
(e só raramente Eu Prometeu acorrentado
a este Cáucaso chamado escrivaninha
não estou a escrever, digo, a ver meu fígado
sendo dilacerado pelo abutre transmetamorfo
denominado caneta, me rapinando
vulgo escrevendo, escrevendo, escrevendo)...

Porém, como estava dizendo:
quando escrevo,
costumo fazer tão convincentemente
de conta que tenho língua de pau
e palato de pedra
que as estrelas que outrora haviam
eufemisticamente no céu de minha boca
foram reduzidas, faz tempo
a pó estelar quase que propriamente dito
pelo impacto seco e replicante
da língua dura e ritmada
a bater secamente de encontro
ao referido, concreto, desestrelado
e eufêmico firmamento...

José Lindomar Cabral

Não identificado

Escrevo algo parecido
com uma margarida.
Basílica de Aparecida
Obra de Niemeyer
Um beijo de novela
do José Mayer.
Uma ilha
Brasília
O Rio em Janeiro
Frevo em Fevereiro
Qualquer coisa
sem direção
em busca de definição.

Thiago Cardoso Sepriano