sábado, 15 de janeiro de 2011

Entrevista com Mário Quintana em 1988 (Em duas partes)

PRIMEIRA PARTE

Os anos são apenas linhas imaginárias. E as pessoas é que devem decretar quando estão na flor da idade, disse o poeta Mário Quintana, ao fazer 82 anos em 30 de julho de 88. Nesta entrevista, feita na épca, ele não comemora a idade - fala de política, religião, literatura, esperança. E, sem medo da morte, comemora o próprio vigor, anunciando novas obras, entre elas quatro livros infantis.

Por HERMES RODRIGUES NERY

Tenha-se em mente que o que é notável na obra do poeta gaúcho Mário Quintana- que hoje completa 82 anos de idade -é a recusa de uma visão amarga do mundo. Em sua poesia não existem neuroses, a esperança é o seu leit motiv. Nele próprio, nascido em Alegrete e morador quase toda a vida em Porto Alegre, tudo é solto, descontraído, informal. O que faz sua obra ser admirada por pessoas de qualquer idade, e o homem ser cercado de carinho até por pessoas que talvez nem o conheçam. Esse carinho por Mário Quintana percebi assim que cheguei a Porto Alegre para entrevistá-lo. Pouco antes, comprei-lhe uma caixa de bombons, e a confecção do presente foi disputada pelas duas vendedoras do supermercado. "É para o Quintana!", repetiam emocionadas. Carinho também distribuído diariamente pelas três mulheres que cuidam diariamente do poeta, a secretária Mara, a sobrinha Elena, Sandra. "Não me casei, mas arrumei essas três moças que me dão um trabalho danado", brincou Quintana, apresentando-as.




O senhor crê na reencarnação? — Pois eu não sei, sabe? Eu acho felizes os que têm crenças religiosas. Acontece que eu só tenho dúvidas religiosas. O que vai se fazer, né?

O que o sr. acha do fanatismo? — O fanatismo é incompatível com a inteligência.

Como o sr. vê São Francisco de Assis? — São Francisco de Assis? Irmão isso... irmão aquilo? Ah... mas ele só gostava dos bichinhos bonitinhos. Porque ele não falou dos irmãos vermes que pululam às cargas, em outras coisas horrorosas? Na irmãzinha aranha... na irmãzinha jararaca... Só falou nas coisas bonitinhas. Ah, não...

Voltando ao seu trabalho, o senhor recebeu algum incentivo familiar em relação à sua vocação de poeta? — Ah... muito. O meu irmão Milton e minha irmã Marieta, que eram os meus irmãos mais velhos, eles gostavam muito de poesia, colecionavam poesias, leram os meus primeiros poemas, me ajudaram a escolher coisas para o meu primeiro livro, enfim, minha família me ajudou muito.

Como foi seu primeiro contato com a poesia? — Eu acho que a gente nasce com isso. Lá pelas tantas eu comecei a fazer uma coisa que julgava que era um poema. Com o tempo eles foram ficando poemas mesmo.


Na sua opinião, foi bom que as escolas literárias tivessem acabado? — Mas é claro... embarcar numa escola literária é o mesmo que entrar num mesmo barco. Quando o barco afunda, vai todo mundo pra cova.

 Há na capa de um de seus livros um retrato de um quadro de Vincent van Gogh. Como vê a obra deste pintor?
— É o meu pintor predileto. Não preciso explicar o que é que eu sinto... com certeza há alguma coisa dele em mim, e alguma coisa de mim nele. O amor não se explica.

A televisão contribuiu para que as pessoas lessem menos? — Contribuiu. E acho uma coisa horrível, porque antes a gente não tinha o que fazer e lia, não é?... agora todo mundo está olhando novela na tevê. Eu, por exemplo, tenho o máximo de cuidado de não telefonar para as donas de casa na hora da novela...

Dentro do pensamento brasileiro, como vê Alceu Amoroso Lima? — O Alceu Amoroso Lima, antes de tudo, era o meu grande amigo e falo também no Gilberto Freyre. Acho dois velhos admiráveis. Eu desejaria ser um velho como eles... velhos que estão sempre presentes na vida atual, sempre estiveram presentesŠ eles são sempre contemporâneos.

Neste ano do centenário da abolição, como vê o preconceito na mentalidade e atitude do nosso povo? — Eu nunca tive preconceito. E para todos nós, pelo menos na minha geração, tem uma negra velha que nos contava estórias, que nos ajudou a criar, de maneira que todos nós tivemos uma mãe preta... pelo menos na minha geração...

Eu queria fazer uma última pergunta. Como o senhor vê essa ausência de ideais que tanto caracteriza a atual geração? — Mas eu acho que notar a ausência de ideais — é um sinal de que não está tudo morto, não é? Se não, não se notaria nada...


SEGUNDA PARTE


Sem medo da morte, Mário Quintana comemora o próprio vigor, anunciando novas obras, entre elas quatro livros infantis.


Por HERMES RODRIGUES NERY

E o que me diz da esperança? — A esperança? Olha...eu sempre digo uma coisa, que o primeiro ditado está errado. O ditado diz que, enquanto há vida, há esperança. Eu digo que enquanto há esperança há vida. Porque nunca foi encontrada em nenhuma parte do mundo, num bolso de um suicida, um bilhete de loteria que fosse correr no dia seguinte. Ele esperaria, ao menos, para comprar o revólver de ouro.

Já que falou em suicídio, o que leva muitos artistas ao suicídio? O que o sr. pensa sobre o suicídio? — Eu não posso dizer, porque eu nunca tive coragem de me matar.

Mas alguma vez pensou em se matar? — A gente sempre pensa em se matar, mas não se mata. Eu tenho notado que os que pensam ou os que falam em se matar, nunca se matam. Os suicidas que eu conheci nunca falaram em se matar. Para mim foi sempre a maior surpresa. O que se há de fazer?


Santa Tereza D'Ávila alertou-deveríamos tomar cuidado ao tentarmos nos livrar de nossos demônios para que não perdêssemos, junto com eles, os nossos anjos... — Esta é muito boa da Santa Tereza. Esta eu não conhecia.

O ideal, continua ela, é aprender a dominá-los e a conviver com eles. O que o sr. pensa a respeito disso? — Pra não perdê-los todos? Bem... Vamos botar isso nos planos, digamos da nossa mitologia atual. É o caso do dr. Jekill e Mr. Hyde, não é? "O Médico e o Monstro", quer dizer, o doutor Jekill... o meu doutor Jekill convive perfeitamente com o meu Mr. Hyde. Um não é inimigo do outro, como naquela história.


Como se dá este convívio? — Como conviviam? Ah... um tinha raiva do outro. O doutor Jekill odiava o Mr. Hyde. Já o meu doutor Jekill e o meu Mr. Hyde são amigos. Aí e que está a coisa assustadora... Eles são amigos. Vão pra farra juntos. Você viu o que é que eles fazem? Não compreendo bem, mas é isto. Não há esta luta propriamente. O que há nesta convivência é a aceitação um do outro.

A felicidade, talvez? Dizem que esta reside na infância, a sua foi boa? — A minha infância foi muito boa. No tempo em que eu era guri, Papai Noel ainda não tinha invadido o Brasil, quem botava as coisas no sapato da gente, no Dia de Reis, era o Menino Jesus. Os acontecimentos felizes da minha infância? Três sapatinhos... Os infelizes? Eu não sei, eu sempre digo que é o adulto que inventa a infância, e a invenção é que é feliz, a infância em si não pode ser tão boa.

E quando se fala em ser sempre criança? — Mas é preciso não perder nunca a criança que se tem dentro de si.


Este é o ideal? — É. A gente deve sempre conservar aquela disponibilidade, aquela curiosidade pela vida que as crianças têm. Um adulto que se 'adultiza' demais... bah! Não tem curiosidade, não tem aceitação para tudo que as crianças têm. E, antes de tudo, a curiosidade: o mais triste da vida é alguém perder a curiosidade pela própria vida.

O senhor foi um menino tímido, travesso, um 'enfant terrible?' — Sempre fui um menino tímido, algumas travessuras-mas é melhor não aprofundar os aspectos negativos... Fui um menino muito doente, a única coisa que eu fazia era, quando me confessava, inventar pecados para contentar o padre confessor.

E a escola? — Olha, para mim as crianças até os sete anos são muito inteligentes; depois, os professores, em vez de transformar as crianças em bons adultos, ao invés de 'adultizar', adulteram-nas, sabe como é? Estragam tudo.

Não é uma boa instituição, deveria desaparecer? — E claro que ela deve existir, a gente não deve deixar crescer um ser livremente, é capaz de virar tudo bandido.

O senhor traduziu Proust, Voltaire. Como foi seu contato inicial com a língua francesa? — Minha mãe lecionava francês, aprendi com meus pais, naquele tempo todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês — as senhoras iam visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é que se estava tramando.

Francês e Latim saíram do currículo das escolas. Isso empobrece culturalmente o aluno de hoje? — O latim nunca fez parte do meu currículo-eu fui educado no Colégio Militar de Porto Alegre, uma escola fundada pelos militares que eram positivistas e não queriam saber de nada que cheirasse a padre... Mas retirar o francês foi a maior injustiça, o francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos-se os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra em Dostoiévski. Pelo menos para mim.

 Dentre os poetas franceses quais os que mais admira? — A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine. Os outros são discípulos, seguidores, continuadores...

Como tradutor, como vê esta profissão? — Eu acho uma coisa de grande responsabilidade. Porque eu creio que a tradução de um poeta para a nossa língua é nada mais, nada menos, que a estréia deste poeta na literatura brasileira. De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha que eu traduzi Proust e que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée, traduzi esta gente assim.

E como foi traduzir Proust? — Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a ginástica, faz bem.

Mudando de assunto, dizem que o cigarro faz mal. O que o sr. com 82 anos, e que sempre fumou, diz deste saber popular? — O cigarro não faz mal nenhum. Eu digo por conta própria. Porque eu comecei a fumar aos 14 anos e até os 81 não tinha morrido, tá? Acontece que aos 81 anos eu estava muito magro, eu estava com o esqueleto do lado de fora, sabe como é?... Contava as costelas, então, por uma medida de precaução, para não embarcar tão cedo, eu deixei de fumar. E me dou muito bem não fumando. De maneira que o cigarro...(pausa)...ah ...há gente que chegou aos 90 anos tendo fumado toda a vida e gente que morre aos 90 anos e nunca fumou. A coisa é muito relativa.

Conte-nos de sua viagem ao Rio de Janeiro, aos 24 anos, quando passou seis meses como voluntário no 7º Batalhão de Caçadores. — Eu passei lá seis meses, lá pelas tantas pedi demissão. Passei seis meses me divertindo...me divertindo muito...

Qual sistema de governo mais lhe agrada? — Eu sempre fui monarquista.

Recentemente houve uma discussão na Constituinte em torno da possibilidade de retorno da Monarquia no Brasil... — Mas haverá antes um plebiscito...

Qual a vantagem que vê na monarquia? — Os eleitores estão cansados de tantos quatriênios desperdiçados. O primeiro ano do quatriênio é em acomodações políticas, e o último ano do quatriênio é em outros ajeitamentos políticos. De maneira que só sobram dois e não dá pra fazer nada. Já vi revoluções no Brasil que na metade da luta o governo acabava aderindo, quer dizer... fica tudo impuro. Agora, a monarquia tem o rei lá que reina, mas não governa, mas fica. Pode o primeiroministro cair, ou o povo mudar de opinião à vontade... que isso não adianta nada... fica tudo firme...

Qual o presidente da República que o senhor achou mais interessante no Brasil? — Eu sempre achei o Getúlio Vargas um grande estadista.

Como vê a era de Vargas? — O Vargas... O Getúlio Vargas fez o Estado Novo porque ele não acreditava no povo, na opinião pública... então fez o Estado Novo, mas fez também muita coisa boa... muita coisa boa, de maneira que o povo gostava dele e quando ele voltou ao governo foi pelo voto do povo, que deu um brilhante desmentido naquele que não acreditava no povo.

E o que o sr. me diz da grande guerra? — Da guerra? Mas é claro que houve um impacto da guerra. Todos nós ficamos com medo que o Hitler ganhasse, é claro... e eu, mais ainda, porque devido a minha vasta cultura francesa, eu sei pouco de geografia. Quando invadiram Pearl Harbour, eu pensei que Pearl Harbour ficasse no Atlântico e fiquei assustado, e pensei: estamos perdidos. Depois eu soube que ficava do outro lado do mundo, lá no Oceano Pacífico (ri).

Como sente uma verdadeira amizade e um verdadeiro sentimento de amor? — Olha... eu acho que a amizade é uma espécie de amor que nunca morre... e o amor é uma coisa que todo mundo sente, todo mundo tem... é uma das molas da vida, independente da sua realização. Basta estar amando. Afinal de contas, eu acho que há duas molas na vida: o amor e o ódio. E preciso estar sempre amando alguma coisa e sempre odiando alguma coisa para dar valor à vida. O próprio Cristo, que pregou o amor, foi implacável quando expulsou os vendilhões do Templo. Aquilo foi a cólera de Cristo.



Hermes Rodrigues Nery é professor de História e foi colaborador do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde.

Das utopias

    Se as coisas são inatingíveis... ora !
 Não é motivo para não querê-las
     Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas.

(Mário Quintana)



Das ilusões

    Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o
   Com ele ia subindo a ladeira da vida.
          E, no entanto, após cada ilusão perdida...
      Que extraordinária sensação de alívio

    (Mário Quintana)



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